Para que não se repita

Esperança cresce junto das doações para concurso do memorial da Kiss

Pâmela Rubin Matge

O número 1.925 da Rua dos Andradas, há quase cinco anos, ainda estampa vestígios deixados pela fumaça e escancara uma vergonha impune em pleno coração da cidade. O prédio, como está, acabou sendo incorporado ao mobiliário urbano. Em parte da fachada, um trabalho em grafite feito no último dia 3, pelo artista Deivison Lima, pede o abraço de todos. Como antítese à destruição e alento ao irremediável, em branco sobre azul celeste, as paredes gritam, sutilmente: Para que não se repita!

4 motivos para ajudar a construir o memorial da Kiss 

Hoje, há quatro dias do fim, a campanha de financiamento coletivo que definirá o projeto vencedor para a construção do memorial em homenagem às vítimas da boate Kiss depende da solidariedade de cada um. Até o meio dia desta quarta-feira 671 pessoas haviam doado R$ 122.028 por meio da plataforma digital e outros R$ 15 mil, em uma conta Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia em Santa Maria (AVTSM).  

Se a meta de R$ 150 mil não for atingida, o dinheiro será devolvido aos doadores. O Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RS), que encampa o concurso, informou que não haverá prorrogação dos prazos da campanha, mas que a esperança foi retomada. Isso porque, somente entre a segunda e a terça-feira, foram arrecadados R$ 10 mil.

A intensificação das doações contrasta com os passos lentos que permearam as discussões em torno do prédio, que foi palco da maior tragédia que o Estado já vivenciou. Sede de vigílias, protestos, pichações e polêmicas, o local também protagonizou negociações e impasses judiciais. Somente no dia 10 de julho deste ano, veio a tão esperada assinatura do termo de desapropriação do imóvel. Na mesma data, o concurso público para a execução do memorial em homenagem às vítimas era lançado. Em 21 de agosto, começava a campanha por meio do site da campanha.

 COMO CONTRIBUIR
-  Pessoas físicas ou jurídicas podem doar utilizando a plataforma de financiamento coletivo disponível no site da campanha
– Ao acessar a página, o doador deve clicar em "Apoiar este projeto" e escolher o valor desejado para a doação
– O pagamento será feito com cartão de crédito ou Moip (pagamento online). Há ainda a possibilidade de emitir boleto bancário
– As doações são declaráveis no Imposto de Renda e, dependendo do valor, o doador poderá ter direito a uma recompensa
– Também é possível ajudar por meio de depósito bancário na Caixa Econômica Federal, Agência 0501, Op 013, CC 257451-4
– Uma alternativa é passar, até sábado, entre 9h e 18h, na tenda da AVTSM, na Praça Saldanha Marinho, e deixar qualquer contribuição em dinheiro 

Artistas gravam vídeo em apoio à campanha de arrecadação do Memorial da Kiss

ÁRDUA CAMINHADA
Embora a AVTSM reconheça cada gesto, a adesão à campanha percorreu árdua caminhada. No início, foi perceptível o distanciamento de uma Santa Maria que, à época do incêndio, já foi exemplo de voluntariado. 

 Santa Maria - RS - BRASIL
Foto: Lucas Amorelli / New CO DSM

Nem mesmo a readequação do valor que alterou a meta mínima de R$ 250 mil para R$ 150 mil, da divulgação do relatório do seminário que discutiu o futuro do memorial, das notícias, dos inúmeros pedidos e dos vídeos de diversos artistas amplamente compartilhados nas redes sociais, motivaram as doações esperadas.

Pós-doutora em Filosofia, a psicóloga Rosana Dorio Boher atuava como presidente da Associação Brasileira de Psicologia nas Emergências e Desastres (Abrapede) à época da tragédia da Kiss. Rosana explica que centenas de memoriais no mundo mostram que a expressão de cuidado com os mortos é um símbolo da expressão do cuidados para com os vivos:

– Nossa solidariedade pode ser externada por uma expressão de maior solidez nos laços com os familiares das vítimas da Kiss. O memorial com os nomes e as histórias tem um efeito inigualável. Uma coisa é você dizer que centenas de pessoas morreram numa tragédia. Outra é dar um rosto às estatísticas, mostrar quem são elas, suas histórias. No espaço público, o luto concreto dilui muito rápido, as pessoas querem tocar a vida, mas, no íntimo, elas também querem ver que algo foi feito sobre o que aconteceu. O apoio ao memorial demonstra o respeito e a importância que o coletivo dá para sua própria comunidade.

Críticas à campanha
As primeiras movimentações em torno da campanha já geraram, em parte da população, críticas e confusão. No Facebook (veja abaixo), os comentários questionavam os valores da campanha, que é organizada pelo  Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RS). 

 Santa Maria - RS - BRASIL
Foto: Lucas Amorelli / New CO DSM

O arquiteto Tiago Holzmann da Silva, coordenador do concurso, defende que esse será um processo exemplar, desde o desenvolvimento de um projeto arquitetônico, da melhor relação do público com o privado, das aprovações e respeito às leis e do envolvimento da comunidade na tomada de decisões:

– Quantos cruzaram a porta daquele prédio, ou de tantos outros com os mesmos problemas, e saíram ilesos? Quantos não poderiam ser parte de 242 vítimas? Devemos primar pelo profissionalismo para que tragédias como essa não se repitam. E o concurso público é o melhor caminho.

O presidente do IAB, Rafael Passos, acrescenta:
– A tragédia de Santa Maria revelou um aspecto grave da cultura da nossa sociedade: o jeitinho, o improviso, a falta de respeito às regras, um resultado de um somatório de erros. Desde as relações privadas entre profissionais e clientes que dão de ombros a decisões de projeto e execução de obras e tomam decisões a revelia do conhecimento e responsabilidade desses profissionais, até  o desrespeito aos trâmites no processo público de aprovação, licenciamento e fiscalização. É incrível o engajamento que os familiares das vítimas demonstraram. Esperamos que a sociedade, nesta reta final, dê uma reposta a altura desta disposição.

O financiamento coletivo na plataforma digital, popular vaquinha online,  irá custear o concurso público nacional de arquitetura que vai escolher o projeto do memorial. Nele, estão incluídas despesas com divulgação, organização e premiações.  

– No início, a política acabou afastando um pouco a adesão da população. Cobramos muito, independentemente, do partido político. Na campanha do memorial, sofremos críticas do empresariado, por pedirmos R$ 10, R$ 15 das pessoas e nos darmos ao luxo de pagar um concurso. Mas, deixamos claro, que não é leilão, nem colocaremos placa de empresas e não contaremos com um centavo de dinheiro público. É uma questão e honra. Só queremos agradecer aos que ajudaram, além celebrar a vida  e a história. O memorial será para toda a cidade – pontua o vice-presidente da AVTSM, Flávio Silva. 

Mãe de vítima pede apoio
Sozinhos, não conseguiremos. É sábado, 18 de novembro de 2017, 5h44min. Mais uma vez sem dormir. Mas, hoje, revivi o 27 de janeiro de 2013. Vejam como somos frágeis. O Bruno, nosso querido, que convive conosco e, no silêncio do seu olhar, tenta suprir a dor da ausência do irmão, resolveu ir a uma boate. Quem o conhece sabe que são raras suas saídas. Podem imaginar a preocupação que senti? Rezei, apenas, porque Deus é que está no controle. 

Ali por 5h10min, o telefone tocou. Então, em milésimos de segundos, meu coração parou de bater, meu corpo formigou todo e meu cérebro me projetou de volta a 2013. O Paulo disse: Meu Deus! E atendeu o telefone. Ninguém falou do outro lado, aí ele ouviu o som do alarme da nossa casa, estávamos dormindo na casa da mãe dele. Ligou, imediatamente, para o Bruno. Ele estava em casa, demorou a desligar o alarme. Depois disso, chorei... de alívio. Agradeci e lembrei dos pais que não têm mais nenhum filho.

Chegará um dia em que essa dor ficará mais amena, e entenderemos as dores alheias. Temos vividos tempos difíceis, estamos todos meio que paralisados. Estão mexendo com o mais profundo dos sentimentos: o amor. Estamos nos desumanizando. Precisamos mudar o rumo dessa história. Há uma ferida que sangra no Coração do Rio Grande, na nossa Santa Maria, e só o tempo, com sua justiça, poderá curá-la. As cicatrizes permanecerão. Contudo, a vida segue seu curso, o prédio da Rua dos Andradas precisa dar lugar à solidariedade. Por isso, esse memorial, o qual a comunidade pode ser voluntária.

Esse memorial significará vida em primeiro lugar. Ficará mais fácil mostrar aos filhos que precisam se cuidar, principalmente, quem não viveu essa tragédia. Eles não poderão dizer que não sabiam, terão exemplos e também escolhas.  A nós, cabe alertar para que jamais se repita! Não aqui! Temos coragem para recomeçar, mas precisamos de ajuda. Sozinhos, não conseguiremos. Não acho que tenhamos que fazer críticas a ninguém de forma explícita. Hoje, estou aprendendo. Cada um de nós tem um tempo para transformar o coração. Espero que seja agora o tempo de muitas pessoas.

Qualquer valor acima de R$ 5 será bem-vindo. E, se o local for iluminado por 242 estrelinhas, nós, pais, estaremos vendo nossos amados aplaudindo, porque Santa Maria transformou a dor em amor. Seremos referência para o mundo. A mais terrível dor humana é enterrar um filho! Sem dúvida, essa dor faz o coração da gente nunca mais bater com a mesma força!

Por nosso filho Luiz Eduardo (Dudu) e por todos os jovens que perdem a vida para a negligência. Aurea Viegas Flores, com participação de Paulo e Bruno Flores



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